Cerca de 1% a 2% das mulheres em idade reprodutiva apresentam quadro de aborto de repetição. Entre as causas mais comuns, encontram-se as hormonais, anatômicas, cromossômicas e infecciosas, e 40% das perdas gestacionais permanecem sem diagnóstico do fator causal. A importância dos fenômenos tromboembólicos placentários vem despertando interesse não só entre as possíveis causas de abortamento recorrente, mas também entre os casos de má evolução gestacional, como pré-eclâmpsia.
Tabela 1. Alteração vascular placentária e complicação obstétrica
| Trombofilia | Aborto | Óbito intrauterino | Pré – eclâmpsia | Hellp* |
| Deficiência de antitrombina III | ++ | ++ | + | |
| Deficiência de proteína C | + | ++ | + | |
| Deficiência de proteína S | + | ++ | + | |
| Mutação do fator V de Leiden | ++ | ++ | ++ | + |
| Hiper-homocisteinemia | + | + | + | + |
| Hiper-homocisteinemia | + | |||
| SAF | ++ | ++ | ++ | + |
+ : possível associação; ++ : associação definida. Fonte: Blumenfeld e Brenner (1999).
Entre as trombofilias adquiridas, destacam-se a síndrome antifosfolípide (SAF), que se caracteriza por trombose arterial ou venosa, aborto recorrente e trombocitopenia associada à presença laboratorial de anticorpos antifosfolípides (AAFs), que são uma família de imunoglobulinas (IgG, IgM, IgA) autoimunes ligadas a complexos de proteínas plasmáticas e fosfolípides de membrana em testes laboratoriais in vitro. As principais proteínas dos complexos que funcionam como ativos dos AAAFs são β2-glicoproteína I, protrombina (fator H de coagulação), apolipoproteína H, proteínas C e S, anexina V, fator X, entre outras.
Os critérios clínicos obstétricos para diagnóstico de SAF são morte inexplicável de feto morfologicamente normal após dez semanas de gestação, nascimento prematuro antes da 34ª semana de gestação por pré-eclâmpsia, eclâmpsia ou insuficiência placentária grave, três ou mais abortos espontâneos inexplicáveis, sendo descartadas alterações hormonais, anatômicas ou genéticas.
O diagnóstico se dá pela história clínica, presença de tempo de tromboplastina parcial ativada alargado e anticoagulante lúpico. Outro método diagnóstico é a pesquisa de anticorpo anticardiolipina (fonte de fosfolípide), antifosfaditilserina, antifosfaditiletanolamina e antifosfaditilinositol.
A antitrombina III e as proteínas C e S são genericamente conhecidas como anticoagulantes naturais ou inibidores fisiológicos da coagulação, portanto a deficiência delas estabelece maior risco para eventos tromboembólicos.
A antitrombina III age inibindo os fatores IX, X, XI e XII da cascata de coagulação e sua deficiência pode ser causada por mais de 80 diferentes mutações, na maioria autossômicas dominantes, que resultam em risco cinco vezes maior de aborto e de natimorto.
Verificam-se deficiências dos anticoagulantes naturais em somente 15% dos eventos tromboembólicos. Já resistência à proteína C ativada, resultante da mutação do fator V de Leiden, é considerada o mais frequente defeito genético associado à trombofilia, sendo encontrada em 10% a 60% dos casos de trombose venosa. A segunda alteração genética mais comum é a mutação G20210A do fator II da coagulação.
A hiper-homocisteinemia adquirida (deficiência nutricional de vitaminas B6, B12 ou folato, idade avançada, insuficiência renal crônica e uso de antifólicos) ou de origem genética por mutação das enzimas metileno tetra-hidrofolato redutase representa elevado risco para doenças cardiovasculares e também alterações obstétricas como eclâmpsia, HELLP, má formação fetal e aborto recorrente.
Classicamente, os tratamentos propostos para SAF na gravidez incluem a inutilização de prednisona, gamaglobulina endovenosa, acido acetilsalicílico em baixa dose, heparina isolada ou associada ao ácido acetilsalicílico.
Lubbe et al. foram os primeiros a reportar resultados positivos no tratamento das perdas gestacionais utilizando prednisona e ácido acetilsalicílico. Porém, além do uso prolongado de corticoide durante a gestação promover aumento das morbidades fetal e materna, atualmente se questiona a necessidade de sua aplicação, uma vez que os resultados utilizando somente ácido acetilsalicílico são semelhantes.
Os tratamentos para SAF visam evitar a trombose placentária, sendo, para isso, indicada a administração de ácido acetilsalicílico em baixa dose. Mas, as avaliações histológicas das placentas mostram, muitas vezes, maior incidência de deficiência da invasão trofoblástica do que excessiva trombose nas intervilosidades. Os antifosfolípides teriam a capacidade de inibir a diferenciação do citotrofoblasto em sinciciotrofoblasto e também o processo de invasão do trofoblasto. Em função disso, iniciaram-se as associações de ácido acetilsalicílico com heparina não fracionada (HNF) para tratar gestantes portadoras de SAF. A heparina atuaria interagindo com a antitrombina III e promovendo mudança na sua conformação, que acelera em mil vezes sua capacidade de inativar a trombina e os fatores Xa e IXa, além de atuar como anti-inflamatório e agente imunorregulador, diminuindo a ação dos AAFs na diferenciação do trofoblasto.
Indica-se o uso do ácido acetilsalicílico 100 mg/dia no período pré-concepcional e associação de 5.000 a 7.500 UI de HNF a cada 8 ou 12 horas, assim que confirmada a gestação. Alguns autores preconizam a administração de 600mg de cálcio oral, duas vezes ao dia, quando da indicação de HNF. Habitualmente se suspende o ácido acetilsalicílico três semana antes da data provável do nascimento, mantendo-se a HNF até o dia anterior ao parto e retornando sua aplicação 24 horas depois do parto por mais duas semanas.
A heparina de baixo peso molecular (HBPM) (enoxaparina), que difere da HNF por apresentar capacidade de catalisar a inibição do fator Xa e ter menor afinidade por proteínas plasmáticas vasculares e endoteliais e macrófagos (apresentando, assim, maior biodisponibilidade e meia-vida plasmática), vem se apresentando como uma opção no tratamento das SAFs.
A enoxaparina (HBPM), além de promover redução dos efeitos colaterais relacionados à plaquetopenia encontrados com o uso da HNF, reduz os episódios de sangramento por ter menor afinidade pelo fator de von Willebrand, pouco interferindo na permeabilidade vascular. Outro grande benefício da sua utilização nas gestantes é que a enoxaparina reduz os riscos de osteoporose e promove menor ligação dos AAFs ao trofoblasto, assim como diminui o processo inflamatório e a ativação do complemento. Um trabalho publicado pelo grupo Live-Enox mostrou não haver diferenças estatísticas quando se compara a dose de 40mg/dia a de 80mg/dia. Embora os autores indiquem, nos casos em que se encontram múltiplos fatores promotores de trombofilia, a dose de 80mg/dia.
O tratamento preconizado para as portadoras de trombofilias hereditárias é semelhante ao utilizado nos quadros de SAF, associando-se ácido acetilsalicílico em baixa dose a heparina.
Em pacientes não tratadas, com diagnóstico de trombofilias adquirida ou hereditária e aborto recorrente, somente 28% das gestações culminam com nascimento. Segundo um estudo multicêntrico publicado em 2005, quando tratadas com ácido acetilsalicílico isoladamente, as taxas de nascimento não foram superiores a 45%, mas quando se utilizou enoxaparina, foram além de 75%. Alguns autores preconizam a utilização de heparina de forma isolada por não encontrarem benefícios na associação do acido acetilsalicílico, além desta apresentar maiores riscos fetais.
Vários trabalhos da literatura comparam a eficácia de HNF e enoxaparina no tratamento das trombofilias hereditárias e adquiridas na gestação. Como os resultados são semelhantes, a preferência por enoxaparina se dá pela resposta mais previsível a doses fixas e facilidade de aplicação em dose única diária.
(*) HELLP é a sigla usada para descrever a condição de paciente com pré-eclâmpsia grave que apresenta hemólise (H), níveis elevados de enzimas hepáticas (EL) e contagem baixa de plaquetas (LP). A síndrome HELLP é uma complicação grave da pré-eclâmpsia que determina aumento de morbidade e mortalidade maternas e perinatais.